O povo judeu enfrentou duras adversidades nos séculos 6 e 7 a.c. Jerusalém foi sitiada pelos caldeus no reinado de Jeoaquim (603 a.C). Profetizavam nessa época Jeremias, Habacuque, Daniel e outros. O livro de Jeremias relata a péssima condição espiritual do povo: insensível, rebelde e contumaz uma religião apenas de aparências. Sua fraqueza espiritual refletia também na sua vida social. A situação era tão grave que Deus chegou a ponto de proibir o profeta de interceder pelo povo.
Mas Daniel e seus companheiros evidenciaram a luz de Deus por onde passaram. A sociologia ensina que o homem é um produto do meio, mas podemos ver que o compromisso com Deus supera essa regra (6:5,10,16). Sua vida era centrada nEle. Experimentaram o propósito mais sublime da vida: conhecer a Deus e fazê-lO conhecido a outros.
Deus intervém transtornando a história do povo judeu e levando alguns jovens para a Babilônia, via cativeiro.
Eis que “realizo em vossos dias obra tal que não crereis quando vos for contada … “ Hb.1:5. Ele iria promover missões, alargar as fronteiras geográficas das marcas do seu reino e fazer um avivamento como orou Habacuque (Hb.3:2).
Alistaremos alguns aspectos transculturais tão vividos no livro de Daniel, integrado com Habacuque e Jeremias.
1 – Uso da língua e cultura do povo. 1:4
O programa do rei de prepará-los incluía isso: “e lhes ensinasse a língua e a cultura dos caldeus.” Hoje em dia as missões transculturais labutam com a barreira linguística e cultural para comunicar o Evangelho, mas aqueles quatro missionários tiveram um programa de estudo de língua e cultura promovido pelo próprio rei do país. Três anos de estudo e não se admitia repetência ou retardamento: “ao fim dos quais assistiriam diante do rei”.
Creio que Daniel aprendeu bem rápido e isso se mostra em sua vida pessoal, pois seu nome babilônico foi rejeitado, creio que por ele próprio. Nem o rei o chamou de Beltessazar (6:20; 8:15). Provavelmente ele tenha dito: “Não me chame assim, eu não preciso de Bel para me proteger. Chame-me Daniel”.
Isso mostra também que a tolerância e aquiesciência cultural têm limites; o missionário transcultural deve saber aonde pisa. Quando se tratar de comprometer seu relacionamento com Deus ele tem de mostrar suas posições firmes e não agir somente em nome de identificação cultural. O exagero na identificação cultural os levaria a ter muitos amigos, mas a mensagem se perderia … A primeira pregação a vida comprometida com Deus.
2 – Sensibilidade com a cultura diferente da sua
Logo no início de sua permanência ali, os quatros jovens tiveram de lidar com o chamado choque cultural. Foi difícil porque se tratava de comida – algo vital e essencial. O chefe Aspenaz tinha uma ordem real a cumprir: o programa de estudos, moradia e inclusive a dieta alimentar (1:5) ” … ração diária das finas iguarias da mesa real e do vinho”.
“Oba! Vamos comer o mesmo que o próprio rei come!” Diria um missionário desavisado. Daniel e seus colegas, porém, queriam investigar mais a cultura, a origem e preparação da comida, se era ou não dedicado ao deus Bel, etc. Conhecendo mais sobre a cultura, não queriam aquela comida.
Sua sensibilidade cultural se mostra no fato de não menosprezarem a comida, até chamando-a de finas iguarias (1:13) e serem sensíveis com Aspenaz conforme o difícil pedido que lhe faziam. Daniel fez uma negociação e, com a ajuda de Deus, conseguiu mudar seu cardápio sem comprometer o chefe.
Outra situação difícil: a situação era gravíssima porque o rei tinha decretado a morte de todos os animistas, místicos e esotéricos. Um missionário fundamentalista radical iria dizer aos seus colegas: “Olha, ficaremos livres de todos os animistas e esotéricos; o rei mandou matá-los”. Mas Daniel não era assim: sentiu que devia interferir e fez isso com muito tato: procurou entender bem o que se passava falando avisada e prudentemente com Arioque o homem que executaria as penas de morte (2:14,15). A seguir, sem tardança, pediu audiência com o rei com quem se comprometeu, livrando os sábios da morte. Esse tipo de tato, sensibilidade e coragem pela fé são indispensáveis ao missionário transcultural.
3 – Necessidade de confrontação cultural
Certamente Daniel e os outros fizeram várias concessões de valores e costumes. Adotaram a roupa, a língua e usaram sua sabedoria como instrumentos de bênção divina entre os babilônios, como a intervenção de Daniel em favor dos sábios.
Mais tarde, porém, enfrentaram situações que requeriam uma confrontação cultural muito clara e eles não hesitaram em fazer isso, mesmo com risco da própria vida. Quando os assessores do rei manipularam a ambição política e o levaram a assinar um decreto cujo alvo era atingir Daniel, mas este percebeu toda a trama e assumiu sua posição de fé sem titubear, conforme o capítulo 5. Orou com as janelas abertas assumindo à vista de todos sua prática de fé.
No capítulo 3 foi a vez de Misael, Ananias e Azarias assumirem uma confrontação cultural em nome da fé. Expuseram suas vidas ao perigo da fornalha por se recusarem a fazer algo não coerente com sua fé. Deus os honrou livrando-os do fogo. Puderam testemunhar aos prefeitos, governadores, sátrapas e conselheiros reais. O ocorrido deu ensejo a um decreto real exigindo respeito de todos os babilônios para o Deus deles.
Frequentemente os missionários são submetidos a esse tipo de teste. Aqueles que fazem trabalho transcultural têm de perceber a hora de afirmarem a sua fé.
4 – Lidando com política: manipulação que promete favorecimento pessoal
Não raramente missionários ficam sujeitos a situações que aparentemente os beneficia. A tentação de ceder pode ser forte. Algumas vezes essas situações provém do animismo que insinua a manipulação de poderes sobrenaturais para auferir vantagens pessoais: prestígio político ou religioso, reconhecimento, etc.
Possivelmente os grupos animistas e esotéricos fizeram isso como os quatro jovens mas há um registro de oferta de vantagens da parte do rei que Daniel enfrentou: “Se você puder ajudar-me será vestido de púrpura, ganhará uma cadeia de ouro ao pescoço e será o terceiro no meu reino”. Essa era uma boa oferta mas para a pessoa errada, pois Daniel nem se impressionou com ela; ele sabia fazer diferença entre reconhecimento cultural do povo e manipulação interesseira e comprometedora: “Minha palavra profética não negociável; os teus presentes fiquem contigo e dá os prêmios a outrem … “ (5:16,17).
Certa vez fui desafiado por um xamã indígena. Eles procuram prestígio e reputação na capacidade de manipular poderes (trovões, vendaval, doenças) que as pessoas comuns, não têm. Ele me disse: “Você que é crente, não deixe que chova aqui (pela oração, ele queria dizer). Tentei conversar com ele um pouco e argumentei: “O senhor acha que será bom se não chover? Penso que se não chove as frutas não amadurecem na mata, não poderemos jazer coletas sazonais, as caças e os peixes que se alimentam de frutas e flores também não vão crescer, nossas plantações também não vão produzir … Será realmente bom se não chover? … ” Uma pessoa que escutava atentamente nossa conversa começou a rir. Ele ficou desconcertado e mudou de assunto.
Fica uma pergunta: Será que Sadraque, Mesaque e Abede-Nego gostaram da prosperidade com que o rei os agraciou (3:30) e continuaram com seus nomes babilônios? Esta é a última referência sobre eles. Não são mencionados na parte final do livro …
Seria esse um sinal de alerta para missionários transculturais? À guisa de conclusão, olhando a seqüência na história, vemos que no final de tudo, Deus levantou Ciro para reedificar sua obra como predito em Isaías 44 e relatado em Esdras.
O avivamento chegou. As orações de Habacuque, Jeremias e Daniel foram respondidas no tempo de Deus e à sua maneira. O rei Dario consulta os arquivos e atende a decisão de Ciro. Ed. 6:3.
A luz brilhou na Babílônia, cumpriu-se a vontade soberana de Deus.
Fonte: Missionário Silas de Lima – Missões Novas Tribos do Brasil